Novidades

latest

[Crónica] "Odeio o Festival da Canção"


Há exatamente um ano escrevi o rascunho de uma crónica intitulada “Odeio o Festival da Canção”. 

Eu, que sou alimentada durante nove meses do ano por miolo de Eurovisão e côdea de Festival da Canção. Eu, que tive dificuldades em ser um ser humano produtivo durante todos os meses de maio da última década. Eu, que escrevo para um blog sobre o Festival da Canção e a Eurovisão. Eu atingi, em 2018, um nível perigoso de frustração.

Deixo-vos a crónica que nunca foi publicada: 

Odeio o Festival da Canção 

Antes de injetarem ódio e frases pré-pensadas dirigidas a todos os pobres honestos que se encontrarem na vossa oposição, ouçam o que tenho para dizer. Ouvir é uma arte desvalorizada neste mundo em que nos é mais fácil atacar opiniões não lidas do que ler opiniões que não sejam as nossas.   

Ouçam-me. 

Já faz muito tempo que o meu favorito não ganha o Festival da Canção e em 2018, mais uma vez, ganhou a minha aposta favorita. Portanto, hesitem antes me chamar apenas mais uma “azeda que não gosta de perder”.

Acho que Portugal vai ser representado por uma canção maravilhosa, a qual me irei orgulhar imenso de ver a defender as cores do meu país. O orgulho será do tamanho colossal da felicidade que será dizer “Sim, 'O Jardim' é o meu representante” (mesmo que acabe com zero pontos na tabela).

Mas não se enganem, meus amigos. As boas canções que estão a sair do Festival da Canção, tanto o ano passado como a deste ano, não são resultado de uma emissora que quer se tornar uma superpotência no maior festival de música do mundo. Não. 


O objetivo da RTP estes últimos dois anos foi um objetivo nobre a que dou um tremendo valor: apoiar os músicos portugueses. Precisamos que alguém se chegue à frente e dê ao público português a opção de escolher música nacional em vez de a única opção ser ouvir os Despacitos e Justin Bieber vinte e quatro horas por dia na rádio.

Sabem qual é a forma errada de enaltecer estes artistas que irão, pela primeira vez, introduzir-se a uma grande parte público português? 


Colocá-los na Cornocópia dos Hunger Games e dizer “Vão! Sejam adorados pelo povo português!”. Não é irónico que o conceito dos Hunger Games seja mesmo torcer por um e esperar que o resto morra? Parece dramático, mas acaba por ser a analogia perfeita.

De que vale convidarem um artista português que não está nos tops comerciais do país, para promover o seu trabalho, para depois receber zero pontos de quem deveria estar a ser introduzido a esse mesmo trabalho. 

Mesmo que o Festival da Canção se traduza em sucesso na Eurovisão, será sempre em detrimento destes artistas que não estavam à procura de competir.



O objetivo atual do Festival da Canção é, em tudo, falacioso e mal pensado.

Cale-se a imprensa, sedenta de cliques rápidos e indignações comentadas, que procura desesperada “Quem é o próximo a ser acusado de plágio?”. Peitos erguidos de alguém que julga estar a apoiar a música portuguesa quando dá um microfone a intrigas irrelevantes entre pessoas irrelevantes e depois se esquecerá de anunciar os lançamentos dos novos álbuns dos artistas envolvidos neste festival. 

Calem-se os dinossauros que, ano após ano, moldam os resultados do Festival da Canção de forma a caber nos seus moldes do que uma “verdadeira representação portuguesa” deveria ser, sabotando qualquer música que fosse estranhada num festival pré-1999 e incentivando os compositores a nunca escreverem em inglês porque o mais importante é esta cega necessidade de nos mostrarmos patriotas. Que o nosso vencedor vá comer pastéis de nata para o palco da mesma forma que o Ronaldo vai comer pastéis de nata para o campeonato europeu! Ah esperem, o importante do campeonato europeu é ganhar. Situações diferentes, hum? 

Calem-se os diplomas inúteis em Teoria da Música que insistem em me ensinar o que “verdadeira música” deveria ser porque “música é sentimento” e amaldiçoados sejam aqueles que querem ouvir música para dançar, para levantar o espírito, em vez de música sobre a saudade e melancolia de um povo que nos meus 20 anos nunca conheci.  Amaldiçoados sejam aqueles que não louvem o grande salvador da Eurovisão, que salvou este evento de gostos malformados e fogo-de-artificio para a gentalha e salvou-nos da ignorância que é gostar de música que não me faz querer saltar do 3º andar, da ignorância que é gostar de música pop.

A Eurovisão é muito mais do que música, aí é que está o segredo que os Salvadores Sobrais não percebem. A Eurovisão é muito mais do que música.



A Eurovisão é um evento tecnológico que mostra que a Europa consegue oferecer experiências visuais ao nível da Super Bowl dos americanos ou dos grandes concertos KPOP da coreia do sul. É uma celebração de designers gráficos que conseguem tornar uma performance transcendente. É uma celebração dos técnicos de luzes que conseguem desprender queixos das caras e tornar música numa experiência sensorial amplificada. É uma celebração de histórias diferentes. É a celebração de dramatismo, de tolerância e é esta piada privada que só percebemos nós, aqueles que partilham a mesma paixão pela Eurovisão. 


A Eurovisão é comunidade: este evento caricato que se torna a motivação comum de pessoas tão diferentes, vindas de todos os cantos da Terra, de comunicarem. Somos pessoas que vivem em ambientes políticos diferentes, desde dos países subtilmente homofóbicos aos países em que prostituição é uma profissão comum e taxada pelo governo, e, de repente, temos esta área neutra em que interagimos como iguais, como apaixonados pelo este mesmo evento, que nos continua a trazer riqueza para a vida. 

A Eurovisão em nada se assemelha a outras competições internacionais. Quando é que foi a última vez que disseram “só espero que a Itália ganhe o Europeu” antes de dizerem “só espero que Portugal ganhe o Europeu”? Só a Eurovisão consegue equilibrar o patriotismo com o apoio a outro país, que claramente merece vencer mais do que o próprio interesse pessoal. 



Encontrei esta crónica, escondida entre pastas inúteis e atalhos de aplicação que já não levam a diretoria nenhuma. Lembro-me da razão que me levou a não partilhar este monólogo de amargura: faz parte de mim a decisão de nunca contribuir para a crítica sem solução. Escrever mil palavras sobre o que não me apraz será sempre mais fácil e todo o mortal comum tem a capacidade de o fazer (e é o fundamento do modelo de negócio do Facebook). 




Há um ano atrás, eu não tinha valor a acrescentar à echo chamber de gritos anónimos sobre tudo o que está errado com o Festival da Canção. Todos os “as canções são todas iguais” e os “a canção vencedora é uma porcaria” chegavam para criar uma bolha de descrédito do festival de música que escolheu, no ano anterior, a canção vencedora da Eurovisão. 

Não me interpretem mal, eu não julgo a pessoa que escreveu a crónica “Odeio o Festival da Canção”. Ela tinha razão, mesmo que ninguém o soubesse. Ela estava enfuriada por o Festival da Canção, esse evento que lhe era tanto, ser, mais uma vez, pintado a preto e branco. Ela derramou (com hostilidade) a desconsolação que sentia, mesmo ganhando a canção que ela achava que a representaria melhor, do Festival da Canção não refletir qualquer interesse em ser maior que si, maior que Portugal. 

Apercebi-me, ao ler as palavras que foram minhas, de uma ‘eu’ mais nova e exasperada, que eu estava errada: eu nunca odiei o Festival da Canção. 



O Festival da Canção de 2019 não é perfeito e não é para todos. Já era tempo deste festival deixar de ser a festa anual da celebração de Simone de Oliveira e começar a ser a verdadeira celebração do que se faz em Portugal. 

Eu serei sempre a primeira a criticar a RTP, a líder de um naufrágio sempre prestes a acontecer, por não ser uma boa voz para um povo que já não vive em 1960. No entanto, este ano, não lerão injúrias vindas destas mãos já combalidas de guerras virtuais. Este ano, não há amargura.

Os artistas convidados pela RTP para o Festival da Canção 2019 são, finalmente, o reflexo da minha geração. O reflexo de uma geração que não quer mais ouvir falar de “veleiros” e “saudade”, que não quer ser sufocada com guitarras portuguesas ou poemas de Ary dos Santos. Eu sou da Geração Z. Não vi o meu namorado ir para a guerra. Não acredito que tenha um “grande amor da minha vida”. Perco mais tempo a combater a minha própria cabeça do que a pensar em desamores arrebatadores. 

Pela primeira vez, vemos artistas que sobem ao palco do Festival da Canção sem acarretar uma ideia pré-concebida do que tem de ser música para o Festival da Canção. Sempre foi essa a problemática principal e eu culpo as “canções do fim” que vêm contaminar uma oportunidade de mostrar à Europa que Portugal é um país que tem muito para oferecer fora do mercado de “violinos tristes e simplicidade visual”.


“E esta guerra toda
Afinal é por quem?
De que lado é que estou
Se sou eu que não estou bem?”

Durante três minutos fui consumida com o pensamento: “só espero que a Europa esteja a ver”. Podia chorar de orgulho, mas nunca fui de exteriorizar emoção (os terapeutas que atendam à minha incapacidade de expressão). 
A melhor música que se faz em Portugal faz-se fora dos moldes de gerações anteriores. Que arrumem os moldes na gaveta! Eu e os meus somos mais complexos do que fados felizes, do que progressões de acordes esteticamente agradáveis, do que visões claras de movimentos certeiros. Eu e os meus somos “Pugna”. Somos o novo sangue que não corre com medo de tingir tecidos. 


“Onde
Me levas ó inércia
Tão longe
Ficou a inocência
Tão mal, tão bem que sabes
Sabe alguém o que cabe mais em mim?”

Eu e os meus somos a estranheza. Não viemos para agradar quem não nos agrada. Não cabemos em caixa pré-fabricadas por mentes pequenas. Não somos progressão musical previsível e nunca seremos menos do que fomos. Somos o mal sem remorso e o bem sem reconhecimento. Eu e os meus somos “Inércia”. Somos o novo sangue que não corre com medo de tingir tecidos.


“Eu vou partir o telemóvel
O teu e o meu
E eu vou estragar o telemóvel
Eu quero viver e escangalhar o telemóvel”

Eu e os meus somos irreverência. Não sobrescrevemos ao português clássico se o português clássico limitar a expressão artística. Que se danem os poetas entendidos em classes lexicais complexas. Eu e os meus vemos a onda sensacionalista como uma maré que dá o melhor à praia. Digam-nos que não temos conteúdo. Digam-nos que soamos à falta de respeito que pinta a nossa geração. Digam-nos que não merecemos valor, quando valor não pedimos em troca. Eu e os meus somos “Telemóveis”. Somos o novo sangue que não corre com medo de tingir tecidos.


Interessa pouco o que aconteceu na final do Festival da Canção. O Festival da Canção já foi tudo o que que não conseguiu ser nos últimos dezanove anos. 

Obrigada, RTP. 

Imagem: RTP

Sem comentários

Enviar um comentário


Não é permitido:

. Publicar comentários de teor comercial ou enviar spam;

. Publicar ou divulgar conteúdo pornográfico;

. O uso de linguagem ofensiva ou racista, ou a publicação de conteúdo calunioso, abusivo, fraudulento ou que invada a privacidade de outrem;

. Desrespeitar o trabalho realizado pelos colaboradores do presente blogue ou os comentários de outros utilizadores do mesmo - por tal subentende-se, criticar destrutivamente ou satirizar as publicações;

. Divulgar informações sobre atividades ilegais ou que incitem o crime.

Reserva-se o direito de não serem publicados comentários que desrespeitem estas regras.

A não perder
© all rights reserved