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[Crónica]: a letra de "Telemóveis" de Conan Osíris é sobre o quê?


Interpretar a letra de uma canção tem o potencial de ser, na prática, uma idiotice. Afinal, "Like a Virgin" de Madonna pode não ser uma canção sobre ressurreição espiritual - o sarar de feridas emocionais e o tornar-se uma pessoa nova que acredita em amor de novo-, mas apenas uma canção sobre sexo inexperiente. 

Fonte: "Like a Virgin" album | by jack969
Conan Osíris, numa entrevista à RTP, insinuou que “Telemóveis” poderá ser sobre a obsessão que a nova geração tem com os aparelhos. Talvez mesmo a dificuldade de exprimir autenticidade numa sociedade que vive através de perfis virtuais fabricados e utópicos.

Na minha opinião, quando um artista partilha a sua obra com o mundo é inevitável que o mundo itere sobre a sua intenção inicial. Não acho que interpretação do senhor Zé Manel, que ouviu “Telemóveis” na rádio do café, seja menos válida do que a interpretação original de Conan Osíris. 



Portanto, seria um autêntico desserviço não pleitear a canção que Conan Osíris defenderá no Festival da Canção.

Aviso legal: nenhuma interpretação é insuspeita de subjetividade. Todas as palavras que se seguem padecem de um claro narcisismo que resulta na projeção das minhas experiências pessoais numa canção que de mim não alude (malditas as existências deste mundo que não são sobre mim!). 

Ao primeiro contacto, tive a certeza de que “Telemóveis” seria sobre perda (segunda tentativa com uma excelente canção sobre avós falecidos?) pela referência prematura de “Eu parti o telemóvel a tentar ligar para o céu”.

Fonte: Silent Hill | by haris.krikelis
À memória veio o enredo de Silent Hill 2 em que o protagonista, James Sunderland, recebe uma carta da sua esposa, que teria falecido 3 anos antes com uma doença desconhecida. Nesta carta, a esposa pede que James se encontre com ela no hotel onde eles costumavam passar férias. As cartas da esposa em Silent Hill 2 são usadas (spoiler!) como um mecanismo metafórico para simbolizar a ligação que James tem com remorso e como todas as suas ações estarão sempre aprisionadas à culpa que sente porque (plotwist!) James assassinou a sua esposa no hotel referido na carta.

Pensei que as chamadas telefónicas em “Telemóveis” representariam a ligação a um passado onde a pessoa que já partiu ainda estaria viva. Representariam a recusa de continuar uma existência sem essa pessoa, “morrendo” para o presente. Querer partir o telemóvel espelharia a vontade de querer seguir com a sua vida, sem culpa, sem saudade, sem arrependimentos. 

No entanto, ao fim de exatamente 1 minuto da canção, é introduzido um “tu”. Aí, “Telemóveis” mudou de cor e deixou de ser sobre o falecimento de avós. 



O que significa “partir o telemóvel”? A resposta a esta pergunta guia toda a interpretação de “Telemóveis” e terá de ser a primeira pergunta a ser respondida.

Para mim, o “telemóvel” aparece na canção sempre como a alegoria da ligação de uma pessoa a uma adversidade passada: uma relação acabada, a perda de alguém importante, qualquer dor que ainda assombre. Torna-se uma alegoria inteligente se pensarmos que a sociedade como a conhecemos é obcecada pelos telemóveis e vive aprisionada a estes aparelhos, da mesma maneira como todas as pessoas neste planeta vivem aprisionadas ao seu passado. 

O mais curioso do primeiro verso é, sem dúvida, a referência ao “céu”. Não tão direto como “Oração” de António Calvário, mas “Telemóveis” dirige-nos para a imagem de uma prece em desespero. 

A dualidade entre “eu morro” e “eu mato a saudades” diz-nos, à partida, que a saudade é o infligidor. Parece óbvio, mas inúmeras são as canções que romantizam a saudade, em vez de a demonizar. 



Aqui entra uma segunda pessoa no quadro. “Telemóveis” não remete apenas para uma experiência pessoal, mas também para a experiência a ser partilhada por outra pessoa. Remete para a entreajuda necessária, numa relação ou amizade, para ultrapassar adversidades e deixar de se ruminar o passado (este ruminar que se expõe como a falta de coragem para seguir com a vida, de “atender” a chamada da “vida”).

“Quero viver e escangalhar o telemóvel” é talvez a frase que melhor descreve a canção do Conan Osíris. Não só pelo uso de português corriqueiro, mas porque esclarece que o “telemóvel” não é uma coisa saudável - que viver no passado impede qualquer um de estar realmente vivo.



O “telemóvel” - o estado de reclusão a paixões anteriores – é, de facto, propriedade pessoal. Estas experiências explicam a forma como nos relacionamos com o mundo em nosso redor e explicam o nosso ceticismo para como o mundo se relaciona connosco. 

Quando ultrapasso este estado de reclusão- quando “parto o telemóvel” – a pessoa que sai do outro lado do túnel é, essencialmente, uma pessoa diferente. De uma maneira bizarra, se deixar de sofrer pelo passado, um sofrimento que me caracteriza, a pessoa que sou agora “morre”. 



Se “partir o telemóvel” alude para ultrapassar o passado, então, neste verso, a canção muda de direção. Aqui já não há vontade de “partir o telemóvel”, de voltar a amar e sofrer novos dissabores, mas há apenas vontade de nunca mais sofrer: não sofrer por mágoas passadas - “matando a saudade” - e não arriscar sofrer no futuro - nunca mais “partir o telemóvel”.

“Telemóveis” acaba por mostrar uma involução que parte de positivismo, da vontade de viver, e acaba em derrotismo, na total descrença no valor que há em sofrer pelo que vale a pena sofrer.

Como disse inicialmente, tentar decifrar a letra de “Telemóveis” é uma idiotice. Afinal, a canção pode ser um grito anticapitalista à la Joni Mitchell. Pode ser uma crítica à espécie humana que depende cada vez mais de bens materiais. Pode ser uma crítica à nova geração que decide o seu valor inerente de acordo com likes

Pode até ser sobre sexo inexperiente. 
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  1. Uma imagem de milhares de telemóveis partidos :'(

    http://laestrellapalestina.info/imagenes/refugiados/palestina-un-pais-borrado-del-mapa-a-sitta-feb-2012-gde.jpg

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