Aos cinco minutos depois das dez da noite, saio do comboio para pisar uma estação do Estoril sobrelotada. Acelero o passo e ultrapasso as pessoas que vão na casual tagarelice, sem a preocupação de estarem atrasadas.
“Eu li que a situação é mesmo grave… qualquer coisa do coração!” diz uma senhora de idade vestida de ganga dos pés à cabeça. “Coitados daqueles pais! O rapaz é tão novo.” oiço já longe, na saída da estação.
Embora seja uma noite fria em que a brisa já faz apertar todos os botões dos casacos, o quente das conversas barulhentas que vêm dos restaurantes pinta uma outra noite de verão. É entre risos contagiosos da esplanada mais próxima que se ouve uma voz inconfundível.
Já nos jardins do Casino Estoril, calco rapidamente a relva primorosa ao passar por uma família que vai caminhando para junto da multidão.
“Ganhar a Eurovisão é quase tão bom como ganhar o Euro!” esganiça uma criança com uma mão dada ao pai e a outra mão a agarrar um balão branco em forma de coração.
“Eu devia ter vindo mais cedo” rumino surpreendida quando me apercebo que estão muitas mais centenas de pessoas do que eu esperava. Desde grupos de jovens ainda no ensino secundário a casais de idosos bem agasalhados, todos vieram despedir-se de um herói nacional que trouxe uma pitada de felicidade a um povo que precisava de alento.
Para os desinformados que tivesse vindo apenas cantar “Amar Pelos Dois”, qual terá sido a surpresa ao ver Salvador Sobral a cantar uma canção de dialeto indo-europeu! Um pai dança com a filha mais nova à minha frente e, por momentos, estavam ali dois profissionais de flamenco a viverem a melhor versão de cada um.
Resende começa a tocar “Presságio” e, satisfazendo o pedido do Salvador, ninguém levanta o seu smartphone para gravar e a parolagem assossega. No último minuto ecoam centenas de vozes a cantar “Para saber que estão a amar” e, de repente, o Estoril foi iluminado por palavras de Fernando Pessoa e os alunos que tiveram de fazer o exame de Português do 12º ano nem ficam incomodados.
Os primeiros acordes de “Excuse Me” são tocados e o público tem uma reação visível. “O número de vendas do álbum de estreia dele não foi, de maneira nenhuma, exagerado” penso enquanto vejo um homem de barba longa com um casaco de ganga dos Guns N’ Roses a acompanhar todas as palavras do Salvador.
O vencedor da Eurovisão diz “Esta próxima canção nem precisa de explicação… é uma canção lindíssima” e o público já sabe que se aproxima “Nem Eu”, uma clara favorita dos portugueses. A canção fica completa com um abraço entre o Salvador e Júlio Resende: “ele é a minha alma gémea musical e ainda vamos fazer muita música juntos”.
Uma rapariga africana chamada de Benjamin Cymbra viveu no século dezanove (“vá, pode ser”, expõe o cantor) na África do Sul. Benjamin sentia uma disforia de identidade em que sabia que não pertencia a um corpo de mulher. Ela queria libertar-se e seguir a sua verdadeira personalidade e, então, viajou para o Estados Unidos da América (“Estados Unidos da Destruição agora”, ouvem-se risos em todo o jardim) para poder mudar o seu físico numa operação que ainda estava em fases experimentais. Assim, a canção “Benjamin” foi escrita e o alter-ego de Salvador Sobral, no seu projeto paralelo Alexander Search, nasceu.
Um silêncio incomum espreita no final de “Benjamin”.
“Foi muito bom tudo o que tem acontecido embora não tenha lidado bem com as coisas. Mas agora já estou em paz. Já digo aquelas coisas do, «mas você sabe com quem está a falar?». Já abracei a vida de famoso. Já troquei o meu carro velho.”, graceja Salvador Sobral.
“Desculpem qualquer coisa que tenha dito”, ao que alguém grita: “Força, Salvador!” seguido de “Obrigado, Salvador!” e os balões brancos em forma de coração são erguidos ao céu.
“Vou receber todo o vosso amor e guardá-lo numa caixinha figurativa. Espero que caiba”.
Os jardins do Estoril já antecipam a próxima canção e as árvores ficam irrequietas. Luísa Sobral sobe ao palco para cantar, uma última vez (por agora), a canção que trouxe a Eurovisão para Portugal. O público prepara-se para cantar como se “A Portuguesa” estivesse na setlist da noite, mas não cantam em plenos pulmões como nos concertos anteriores. Baixinho e intimidado é o som que vem das gargantas portuguesas por uns segundos. Salvador Sobral apoia algumas lágrimas no ombro da irmã e as centenas de pessoas cantam agora com confiança.
Gratidão é cantada em tons de dó maior porque, afinal, a dádiva de Salvador Sobral transcende o que Salvador Sobral é no espaço físico. A música veio para ficar para as gerações que nos sucederão.
Ainda faltam alguns minutos para a meia noite e o cantor decide encaixar mais algumas canções. Ouve-se numa voz animada “I don’t know why you say goodbye, I say hello” antes da última canção da noite.
Uma das minhas canções favoritas neste mundo escrita por uma das minhas pessoas favoritas neste mundo é escolhida como canção final. "A Case Of You", da incomparável Joni Mitchell, vê justiça a lhe ser feita. Salvador grita, com as lágrimas a serem contidas, “I'm frightened by the devil”. Olho em meu redor. Os arrepios não são mérito da noite álgida e não poderei ser a única a notar.
As vénias são mais pesadas do que o normal. As palmas dizem mais do que o som que fazem.
Porque é mesmo um “até já”. O público português não disse “adeus” e recusou-se a ouvi-lo também. Chamem-lhe fé ou inocência, mas os corações brancos foram nas mãos das pessoas porque todos levamos um bocadinho de Salvador Sobral connosco.
Fonte/Imagem: SAPO e Flash!
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