Novidades

latest

[Crónica] A canção mais importante do Festival da Canção 2020


Em consenso podemos dizer que a segunda semifinal do Festival da Canção 2020 é, objetivamente, menos entusiasmante que a primeira semifinal. 

Existindo algumas boas canções no conjunto de oito canções, sonicamente, não se destaca uma canção que se pinte como nova e distinta. Entre hiphop português abaixo dos standards de impacto esperados e os sempre bem-vindos (mas raramente eficazes) sons derivados dos PALOP, a sopa musical da segunda semifinal do Festival da Canção enche pouco o estômago de um fã, que já sem pedir por uma nova vitória na Eurovisão, anseia por um programa de entretenimento televisivo que represente o melhor que cá temos. 

Às vezes, apreciar uma canção é instantâneo. Uma batida dançável, uma letra emocional, uma melodia que penetre o inconsciente. Outras vezes o valor de um bem intangível não pode ser captado durante a espera de três minutos pelo metro da linha vermelha. 


Quando me foi pedido para escrever um comentário sobre "Cubismo Enviesado" de Judas, escrevi o seguinte:
“Cubismo Enviesado” tem a minha produção menos preferida do Festival da Canção 2020, quase parece um demo. A prestação vocal parece tudo menos natural. A letra ganha o prémio Letra Mais Irritante e Repetitiva. De facto, não vejo.

Sobre a produção de “Cubismo Enviesado”, não tenho nada a retractar. Acho a bass-line eletrónica pouco interessante (e difícil de realmente distinguir sem uns bons headphones). A dinâmica musical no refrão stripped-back é totalmente anulada porque qualquer ouvinte, a dois minutos do início da canção, apenas se consegue focar no quão repetitivo e intragável se torna o verso “Vês ou não?”. Nem os vocais etéreos e a introdução de um hi-hat mais agressivo conseguem tirar, no final de “Cubismo Enviesado”, o mau travo da língua.

A minha cabeça não estava a conseguir encaixar as peças. 

Hélio Morais, o compositor de “Cubismo Enviesado” não só é, aos meus olhos, um dos artistas com mais mérito sobre excelente panóplia da música portuguesa (não fosse Linda Martini uma das melhores e mais influentes bandas portuguesas de sempre), mas é também uma pessoa que admiro por usar a sua plataforma para falar sobre assuntos sociais importantes. Como um dos seus posts de Facebook mais recentes dita “as liberdades que temos hoje não foram conquistadas com pessoas caladas e inertes”. 




Depois de uma pequena pesquisa ao trabalho de JUDAS (confesso que desconhecia por completo), torna-se aparente que Hélio não juntou JUDAS a “Cubismo Enviesado” por uma metodologia lógica aleatória. JUDAS é uma imagem da arte em êxtase, além regras, além conformismo. 




Reiterando, a minha cabeça não estava a conseguir encaixar estas peças todas. 

Achei que devia, no mínimo, tentar dar uma segunda chance à letra de “Cubismo Enviesado” (porque o instrumental não tem grandes chances de redenção).

Comecei por ver as entrevistas disponíveis e, em entrevista ao ESCPortugal, Hélio não hesitou em dizer que a sua composição explora a temática de “todas as perspectivas são válidas […], há muitas formas de olhar para o mundo e olhar para uma série de questões e nesta [canção], especificamente, eu queria abordar ao de leve a questão de identidade de género.”. Ah, uma epifania! Eu não conseguia completar o puzzle porque, afinal, só tinha as peças de centro. As peças de canto foram graciosamente disponibilizadas por Hélio Morais.

Refletindo, a culpa foi minha. E tua. E de todos os que não se deram ao trabalho de ler a letra de “Cubismo Enviesado”. A temática de identidade de género não se esconde em versos vagos e rimas forçadas. 

Antes de dissecar a letra da canção quero certificar-me que todos os leitores conhecem as diferentes designações usadas. Publicado pela Direção-Geral de Saúde:

“[…] sexo e género tendem a ser entendidos como categorias ontológicas diferentes e a “identidade de género”, enquanto perceção intrínseca, individual, de “ser-se” homem ou mulher, deixa de ser pensada como uma mera inevitabilidade ligada ao sexo.
Assim, a identidade de género representa uma experiência subjetiva face às normas, atributos, papéis, padrões de comportamento, atividades e expectativas que uma sociedade considera como apropriadas para homens e mulheres, tomando por base as diferenças biológicas entre sexos.”
Por palavras minhas, sexo é ciência e está relacionado com os atributos biológicos de uma pessoa e identidade de género é social e se alguém te diz que é um homem, uma mulher, nenhum, ou ambos, não há nada para concordar, discordar ou pedir provas. É uma verdade própria.

Vamos então entrar de cabeça na letra:

Se os dedos desta mão, que são os meus
São mais largos do que o espaço entre os teus
E se queres respostas para os teus porquês,
Sou bem mais que a forma como tu me vês

Apenas são necessários os dois primeiros versos para perceber que esta canção é sobre a colisão de verdades tomadas por absolutas por pessoas que caminharam diferentes caminhos. Remete imediatamente para o quão pouca certeza deverá ter a inferência da forma física de um indivíduo, sendo que mãos grandes são vistas como mãos tipicamente masculinas.

Qualquer dedução tirada com base na perceção do que meter na caixa “Homem” na caixa “Mulher” torna-se fatalmente simplória e, em casos, pouco precisa. A “forma” que vemos de qualquer pessoa é somente um prefácio de um livro a ser escrito.

Nunca fiz questão de ser mais do que alguém,
Mas no meu registo escolho o que lá vem

A segunda estrofe está mais carregada de uma atitude defensiva. Fazem poucos meses desde que o assessor de Joacine Katar Moreira usou uma saia (o imenso escândalo de um homem a usar cinco vezes mais tecido do que qualquer homem a correr no Estádio Nacional do Jamor a um domingo de manhã!) e, para os atentos, as pessoas de 50 anos (a audiência ainda fiel ao Facebook) não se contiveram a comentar:

“Então, mas o que é que ele quer? Atenção?” 

“Querem chocar a população para conseguirem mais votos dos liberais extremistas?”

“Se ele se quer vestir de mulher, esteja à vontade! Eu não tenho é de pagar impostos para ele andar assim na assembleia” 

Porque um homem de saia tem de ter uma intenção secundária e pode ter a sua liberdade de expressão na totalidade se ficar em casa fechado onde não possa ser visto por qualquer retrógrado com tempo livre a mais.

Para a vulgar pergunta “O que é que ele quer?”, “Cubismo Enviesado” responde claramente “Nunca fiz questão de ser mais do que alguém”. Não existe outra motivação que não se expressar no que lhe é genuíno, andar pelo mundo sem um dos dois crachás  dados à nascença (“Mas no meu registo escolho o que lá vem”), porque não existe espécie mais expansiva que a humana e que tragédia seria lutar contra a evolução social natural (ou eu ainda não podia exercer o meu direito ao voto democrático!).
Se 1 e 0 é tudo aquilo que tu lês,
Cabe pouco de arco-íris no que vês

“Se 1 e 0 é tudo aquilo que tu lês” remete para a visão binária do mundo (aqui estou eu, engenheira informática, encantada pela referência). Para todos os que veem o mundo separado em 1 e 0 (homem e mulher), vou introduzir o conceito de pensarmos no mundo como um intervalo contínuo [0,1], com infinitos números significantes à direita. Talvez descubram que, afinal, não são um 0, mas um 0.1329855[…].

“Cabe pouco de arco-íris no que vês” cria a imagem da bandeira LGBTQ+ e não precisa de grande explicação.


Por fim,
Vês ou não? 

Talvez “Cubismo Enviesado” tivesse a intenção de ser o fenómeno da racha no espelho. Usaste aquele espelho do teu quarto toda a tua vida e, um dia, dizem-te que existe um racha pequena mesmo a meio do espelho. Torna-se agora impossível o cérebro ignorar a racha. Talvez, esta canção tivesse a intenção de ser a racha numa imagem que achavas espelhar o mundo em que vivias.

E assim, as peças do puzzle já encaixam e “Cubismo Enviesado” já merece as três páginas que escrevi.

Sem comentários

Enviar um comentário


Não é permitido:

. Publicar comentários de teor comercial ou enviar spam;

. Publicar ou divulgar conteúdo pornográfico;

. O uso de linguagem ofensiva ou racista, ou a publicação de conteúdo calunioso, abusivo, fraudulento ou que invada a privacidade de outrem;

. Desrespeitar o trabalho realizado pelos colaboradores do presente blogue ou os comentários de outros utilizadores do mesmo - por tal subentende-se, criticar destrutivamente ou satirizar as publicações;

. Divulgar informações sobre atividades ilegais ou que incitem o crime.

Reserva-se o direito de não serem publicados comentários que desrespeitem estas regras.

A não perder
© all rights reserved