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A Eurovisão e o Festival da Canção na imprensa nacional - 1964, 1965, 1966


1956 – 1963: Como tudo começou

        O Festival Eurovisão da Canção teve início em 1956. A ideia, que partiu da cabeça de Marcel Bezençon no ano anterior, um dos responsáveis da União Europeia de Radiofusão e também diretor da emissora suíça, foi muito bem acolhida pelos seus superiores. O propósito era simples: criar um programa televisivo de entretenimento que ajudasse a reunir o muito fragmentado continente europeu, no período que se sucedeu à Segunda Guerra Mundial. O projeto, que ficou conhecido por Eurovision Grand Prix, arrancaria no ano seguinte.
        Na primeira edição, em Lugano, Suíça, foram sete os países participantes, cada um apresentando duas canções. No ano seguinte, já só foi permitida uma por país, modelo que se mantém até hoje.
Nos anos seguintes, foram vários os países que se juntaram à família eurovisiva, tornando o Festival cada vez maior e mais popular entre o público.
       No entanto, não será difícil de imaginar que, em Portugal, o sucesso internacional do concurso estivesse a passar ao lado da grande maioria das pessoas. A informação vinda do exterior era sempre filtrada, e os portugueses dispunham apenas de um canal televisivo e de muito poucas estações de rádio. 
       O Festival da Eurovisão entrou pela primeira vez em casa dos portugueses em 1963, quando a RTP transmitiu a edição desse ano para poder competir no seguinte. Os jornais, desconhecendo a bomba em que o Festival se tornaria, deram destaque mínimo ao evento. Surgiu na programação do próprio dia em todos, mas no dia seguinte só o Diário de Notícias (DN) – à época o maior – dedicou um espaço para referir que a Dinamarca tinha ganhado o concurso (“A Dinamarca saiu vencedora no Concurso da Canção Internacional”). No artigo, além de referir a dupla vencedora do concurso, foi dito que o programa foi “o mais complexo” até então produzido pela BBC. Oito edições já tinham sido feitas, era sinal de que a evolução era evidente.
      Contudo, em rigor, o Festival tornou-se realmente conhecido pelos portugueses em 1964. Começava aí a longa jornada de Portugal na Eurovisão. Já lá vão 50 anos. Olhemos agora para a forma como tudo começou.

1964 - Uma “Oração” que não foi ouvida

         Foi em 1964 que a RTP decidiu participar pela primeira vez no Festival da Eurovisão. A sua amiga TVE, de Espanha, já andava nestas lides desde 1961, e as principais emissoras do Velho Continente também concorriam. Portugal juntou-se numa altura em que a contestação, interna e externa, ao regime de Salazar não parava de crescer. A braços com uma série de problemas, sendo a Guerra Colonial o maior de todos eles, o país lá resolveu enviar uma canção a Copenhaga e tentar incluir-se no universo europeu.
          Como forma de escolher a sua canção, a RTP decidiu criar o seu próprio festival de música. Ao “Grande Prémio TV da Canção Portuguesa – 1964” chegaram 126 canções (ainda que alguns jornais falem em 127), que foram avaliadas por um júri de seleção durante dois meses. Findos esses muitos dias de trabalho, a RTP divulgou a lista dos 12 temas finalistas e dos seus seis intérpretes, que iriam competir no dia 2 de fevereiro:

Canção nº 1 – “Oração” – António Calvário
Canção nº 2 – “Foi Sonho” – Artur Garcia
Canção nº 3 – “Na Tua Carta” – Madalena Iglésias
Canção nº 4 – “Olhos Nos Olhos” – Simone de Oliveira
Canção nº 5 – “Tirano Gentil” – Gina Maria
Canção nº 6 – “Finalmente” – Artur Garcia
Canção nº 7 – “Manhã” – Guilherme Kjölner
Canção nº 8 – “Amar é Ressurgir” – Simone de Oliveira
Canção nº 9 – “Minha Luz Brilhou” – Gina Maria
Canção nº 10 – “Para Cantar Portugal” – António Calvário
Canção nº 11 – “Lindo Par” – Guilherme Kjölner
Canção nº 12 – “Balada das Palavras Perdidas” - Madalena Iglésias

 A gala foi até bastante promovida na imprensa. Por todos os jornais se viam cartazes promocionais, como aqueles que pode ver em baixo. Além disso, os cantores escolhidos para a estreia do Festival RTP eram na prática as grandes estrelas da música portuguesa na altura. As rádios passavam os temas deles e era frequente a sua presença na televisão. Veja-se, abaixo, o impacto que António Calvário, que viria a ganhar o programa, tinha junto das pessoas. 


        Maria Helena Fialho Gouveia e Henrique Mendes conduziram a emissão em direto a partir dos Estúdios do Lumiar. Os 12 temas foram apresentados ao grande público, acompanhados por uma orquestra de 36 elementos, dirigida por Tavares Belo. Depois, foram julgados pelo júri nacional, que, como explica O Século, foi composto por cinco elementos “recrutados em várias atividades profissionais, nas dezoito capitais de distrito”.
A apresentação dos votos foi feita “impecavelmente”, segundo o mesmo jornal, seguindo a ordem alfabética dos distritos. A partir do estúdio, os jurados eram contactados por telefone e comunicavam assim as suas pontuações. O resultado é do conhecimento de todos: a primeira canção que pisou o palco do Festival foi também a primeira a levar a taça para casa. António Calvário, intérprete de “Oração”, mais do que o passaporte para a capital da Dinamarca, levou consigo 10 mil escudos, um valor bem superior àquele que Guilherme Kjölner e Simone de Oliveira receberam por terem completado o pódio (esses artistas receberam, respetivamente, 6 e 4 mil escudos).


A gala, que era uma absoluta novidade para os portugueses, foi aparentemente muito apreciada. O Século, na conclusão da notícia em que deu conta do vencedor do Festival, elogia o esforço da RTP, dizendo que a emissão foi acompanhada “com muito interesse” por todo o país. Também o DN indica que a emissão especial foi “revestida de características de muito interesse”. O jornal escreve ainda que o concurso chamou à atenção “pelo seu significado artístico” e pela “projeção internacional”. A RTP só podia estar satisfeita. A primeira experiência correra muito bem, pelo menos baseado na opinião interna. Faltava apenas saber o que pensava a Europa não só da “Oração” portuguesa como da entrada do país no concurso.
O Festival da Eurovisão teve lugar a 21 de março, no Tivolis Koncertsal, em Copenhaga. Nesse ano, competiram 16 países, e Portugal era a única novidade na lista de presenças. A Suécia foi o único país que saiu nessa edição.
António Calvário foi o 11º a atuar nessa noite, para uma plateia de cerca de 300 pessoas. Do outro lado do ecrã, segundo avançavam os jornais nacionais, tinha cerca de 100 milhões de espetadores
      A imprensa portuguesa só começou a dar destaque ao Festival no dia do mesmo, com artigos onde constava apenas o básico (número de participantes, modo de funcionamento do espetáculo, e outros pormenores pouco relevantes). Além disso, as publicações reservavam também espaço para cartazes promocionais. Em baixo pode ver um da revista Rádio e Televisão (R&T).


          A mesma revista escreve, num artigo bastante pequeno, que a presença de Portugal no certame cria em todos os portugueses “a mais viva expetativa”. Ainda nessa edição é publicada uma fotografia dos ensaios, na qual António Calvário está junto do seu maestro. Esse é o primeiro revés da estreia portuguesa: a RTP enviou António Calvário, como mais tarde o próprio veio a afirmar, sozinho para Copenhaga. O maestro teve de ser pedido à comitiva dinamarquesa, que jogava em casa. No entanto, a fotografia ao lado mostra como o cantor conseguiu conviver com os seus adversários.


       Não foi esse o único momento atribulado da aventura nacional. Pouco antes de o país subir ao palco, um homem furou o cordão de segurança e entrou em cena, empunhando um cartaz contra Franco e Salazar, os líderes das duas ditaduras ibéricas. As câmaras desviaram o seu foco para o quadro de pontuações, na altura ainda a zeros, e o escândalo ficou atenuado. Na imprensa portuguesa, como é óbvio, nem uma palavra foi escrita sobre este assunto. Os zero pontos que “Oração” manteve até ao fim da votação foram embaraçosos por si só, mas não impediu a revista R&T de apontar que a nossa canção foi uma das mais aplaudidas.


         No dia seguinte ao Festival, o DN dá conta da vitória da italiana Gigliola Cinquetti, mas no título do artigo não deixa de escrever “mas a canção portuguesa (…) não destoou das melhores”. No artigo, o jornal aumenta o número de espetadores que assistiram ao concurso – foram, afinal, cerca de 130 milhões, um valor que ombreia os atualmente registados. Ao prosseguirmos na leitura, vemos que o autor do artigo deixou de divulgar factos, e passou a dar a sua opinião.
         Diz o jornalista, cujo nome não está junto do artigo, que a Eurovisão do ano anterior tinha sido “excecional”, mas que a de 1964 tinha deixado a desejar, por causa da realização “sem ritmo nem brilho”, prejudicada pelo tamanho do palco e pelo facto de estar muita gente no público. As 300 pessoas aplaudiam com bastante entusiasmo certas canções e isso, como sugere o jornalista, pode ter influenciado algumas decisões do júri. No mesmo artigo lê-se que, por imposição do regulamento, nenhum dos jurados podia ter relação alguma com a indústria musical. Ora isso fez com que fizessem parte do júri português jornalistas, um empregado dos telefones, um profissional de seguros, uma professora do liceu, um publicista, um escritor e ainda uma enfermeira do Hospital de Santa Maria, que foi também a presidente do júri!
         O mesmo artigo denunciou também um padrão de voto “regionalista”, com favorecimentos aos países vizinhos. Na ausência dos futuros blocos soviético e dos Balcãs, o autor criticou a troca de pontos entre os países da Escandinávia e os de língua oficial francesa.
          Por ser a primeira edição, e muito longe ainda do furor que a Eurovisão seria daí a poucos anos, os jornais portugueses não acharam proveitoso enviar jornalistas para a Dinamarca. A cobertura foi feita à distância e tendo como base aquilo que viam no pequeno ecrã. Deste modo, não há registo de declarações de António Calvário sobre a sua estada em Copenhaga. A opinião do próprio sobre a sua aventura eurovisiva está muito bem sintetizada numa curta entrevista que deu, em 2003, à revista TV7Dias. Diz ele que sentiu imensa responsabilidade, ainda mais porque se deslocou ao Festival “sem a proteção e o aparato” que há hoje em dia. No fundo, admite que foi um “pioneiro desamparado”. Ainda assim recorda que, nesse ano, atuou em todas as televisões europeias e os seus concertos no estrangeiro aumentaram. Há sempre um lado positivo…

1965 – Não houve Sol neste Inverno

        Os null points que marcaram a estreia de Portugal na Eurovisão não desmotivaram a RTP, que decidiu enviar novamente uma canção ao Festival em 1965, e muito menos os compositores, já que a emissora recebeu 149 propostas (um valor superior ao de 1964). Contudo, a imprensa não partilhou este entusiasmo.
       Na véspera do festival, e mesmo no próprio dia, os jornais portugueses não deram grande destaque ao evento. Os cartazes, que abundavam nas páginas das publicações no ano anterior, desapareceram desta vez. Nem o facto de estarem a concurso cinco artistas muito populares na época pareceu animar a imprensa.
       De facto, a segunda edição do Grande Prémio TV da Canção Portuguesa contou com oito temas (menos quatro que no primeiro ano), sendo que o representante português no ano anterior, António Calvário, cantou três deles. Simone de Oliveira e Artur Garcia tinham duas canções cada e Madalena Iglésias defendia apenas uma.
       A gala decorreu a 6 de fevereiro, nos Estúdios da Tóbis. Henrique Mendes repetia o trabalho do ano anterior e apresentou os oito temas a concurso.

Canção nº 1 – “Por Causa do Mar” – António Calvário
Canção nº 2 – “Silhuetas ao Luar” – Simone de Oliveira
Canção nº 3 – “Nasci, Sonhei, Cresci e Amei” – Artur Garcia
Canção nº 4 – “Você Não Vê” – António Calvário
Canção nº 5 – “Silêncio Entre Nós” – Madalena Iglésias
Canção nº 6 – “Amor” – Artur Garcia
Canção nº 7 – “Sol de Inverno” – Simone de Oliveira
Canção nº 8 – “Bom Dia” – António Calvário

      Em rigor, o propósito do concurso, como explicou Henrique Mendes na emissão, era o de “fomentar o aparecimento de canções portuguesas de nível internacional”, tendo reforçado ainda que o que realmente importava era o tema e não os artistas. Essa seria uma confusão muito habitual, que acontece ainda hoje, com várias pessoas a votar no artista de que mais gostam e não na canção que melhor se adequa à Eurovisão. Um problema que não é só lusitano.
      À semelhança de 1964, também aqui as canções foram julgadas por um grande júri nacional, constituído, como informa O Século, por 90 pessoas. Estas, divididas em grupos de cinco pelas capitais de distrito (as Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira ficaram esquecidas pois não tinham ainda televisão), votaram com base em gravações em áudio das canções. Depois, na possibilidade de existirem mudanças de opinião, assistiram às atuações. 
Mais uma vez, os jurados não podiam ter nada a ver com a indústria musical. A RTP era forçada a aplicar esta regra, já que constava também no regulamento do concurso europeu. A ideia era que os júris fossem a representação do auditório habitual das emissões televisivas. Na ausência do televoto, através do qual o público pode hoje em dia votar nas suas preferidas, os jurados deviam ser pessoas de origens e vivências diferentes.
As votações desenrolaram-se através de contacto telefónico entre o estúdio e as capitais de distrito, e foram revestidas por um cuidado muito curioso. Assim que a apresentação das canções terminou, os júris ficaram sem sinal de som e imagem nos televisores onde assistiam à gala. Os jurados só o voltaram a receber depois de terem apresentado os seus votos. O objetivo? Como explica O Século, “furtar cada grupo de votantes à influência” que poderiam receber das votações dos outros distritos.
Visitar 18 pontos diferentes do país e registar em direto, através de chamadas telefónicas muito débeis, os votos de todos eles eram tarefas exigentes para os recursos disponíveis na altura. Assim se justifica que a votação tenha durado “mais do dobro do tempo previsto”, como diz o jornal acima referido no dia seguinte ao Festival.


       Depois das canções e de um intervalo de oito minutos (quem nos dera, nos tempos que correm, que as pausas fossem assim tão curtas…), a votação teve início, iniciando-se também uma dor de cabeça para a realização, que foi prejudicada “pelo péssimo critério seguido na recolha, registo e divulgação dos resultados”. As ligações para alguns distritos demoraram a ser feitas, tendo o apresentador de “encher chouriços”. Além disso, o escrutinador-mor, que vigiava a tabela dos resultados, ocupava esses silêncios lendo e relendo os totais da votação, enganando-se vezes sem conta. O programa ficou “arrastado e monótono”, acabando mais de meia hora depois da hora prevista, que era às 23h15. A revista Flama disse que o Festival foi “mal estruturado”, apontando o dedo também à qualidade das letras e das músicas. Disse ainda que o júri não teve outro remédio se não votar nas canções, mesmo tendo pouca qualidade: “não se permitiam abstenções”, escreve o jornalista.


Atribulada ou não, e embora tenha sido renhida, a votação mostrou que Simone de Oliveira era a grande vencedora, deixando Artur Garcia na segunda posição e Madalena Iglésias na terceira. “Sol de Inverno”, que, segundo O Século, era “uma bonita melodia, com música e letra de boa inspiração”, ainda que não tão adequada para a Europa como a segunda classificada, ia representar Portugal a Nápoles, na Itália. António Calvário, talvez por castigo pelos zero pontos no ano anterior, teve todas as suas músicas nos últimos lugares.


O Festival da Eurovisão, realizado a 20 de março, chamou muito mais a atenção dos jornalistas. Simone de Oliveira esteve presente em várias capas, quer no dia do concurso quer nos dias seguintes.
Ao contrário do que aconteceu no ano anterior, na véspera do evento os jornais já davam algumas informações. O DN e O Século promoveram o espetáculo em curtas notícias, onde divulgaram os aspetos mais gerais (participantes, hora de início, informação sobre a entrada portuguesa).
A 10ª edição da Eurovisão teve 18 países participantes. O aumento no número de países inscritos deveu-se à entrada da Irlanda e ao regresso da Suécia, mas o concurso foi ainda mais longe. Como foi amplamente divulgado pelos jornais, o Festival foi visto por vários países de leste, como a Checoslováquia, Alemanha de Leste, Polónia, Hungria, Roménia e Rússia.


Simone de Oliveira, em declarações à revista Flama antes da partida para a Itália, disse ter consciência “das graves responsabilidades” que tinha em ombros, já que o que estava em causa era “o prestígio da canção nacional”. Ainda assim, tinha esperança e alguns nervos. “…nunca devemos ser derrotistas e seria um grande erro partir de Lisboa com a ideia fixa da derrota”, disse ela. À Plateia ela deixou uma nova mensagem, publicada no dia da final, onde se pôde ler “…que todo o público português (…) possa achar que a Simone pelo menos colocou o seu País acima de tudo e de todos”.
O tom grave destas afirmações, a juntar à maior promoção por parte da imprensa e à qualidade de “Sol de Inverno”, amplamente reconhecida como melhor que “Oração”, deixou os portugueses com mais curiosidade e entusiasmo. Não valeu de muito…
Atuando em 12º lugar para uma audiência de cerca de 150 milhões de pessoas (um valor recorde, segundo o DN), Simone não recebeu mais do que 1 ponto, dado pelo Mónaco, equivalente ao 13º lugar. Ainda assim, os vários jornais elogiaram a sua prestação vocal. A R&T foi mais longe e fez uma capa onde se lia “a nossa canção merecia melhor lugar”. Na mesma publicação, um cronista, Diogo de Sepúlveda, opinou sobre a gala, dizendo que Portugal devia sentir orgulho pela sua representação. Acrescentou: “é caso para os principais responsáveis da nossa atuação manterem as expressões risonhas” registadas em algumas fotos. Dava-se assim carta branca para a permanência de Portugal no certame.


O Século, assumindo a sua postura mais crítica, apontou falhas à transmissão, como problemas no som e na imagem (o norte do país ficou mesmo sem sinal e choveram reclamações). Além disso, parece que o locutor da RTP, Gomes Ferreira, falou demais.
Tal como no Festival RTP, o júri português foi composto por figuras de fora do mundo da música: funcionários públicos, uma estudante, um industrial, dois jornalistas e ainda uma doméstica!
O Luxemburgo saiu-se vencedor, com “Poupée de Cire, Poupée de Son”, canção que mereceu rasgados elogios da Flama, devido à sua pureza e simplicidade. O Século escreve que esta canção é um exemplo de música Yé-Yé, estilo tipicamente europeu e que muito sucesso fez nessa altura. A canção portuguesa do ano seguinte pode ser vista como uma tentativa de aproximação a esse estilo da moda. Vamos ver como Portugal viveu a sua terceira experiência eurovisiva.



1966 – Nosso país pedia mais... mais votos

         Embora a Europa parecesse não entender a lógica das canções portuguesas, o público começava a entusiasmar-se e a RTP via imenso potencial no Festival da Canção e da Eurovisão. Com o pensamento de “à terceira é de vez”, o canal estatal inscreveu-se na edição do concurso desse ano, que se ia realizar no Luxemburgo.
       Para esta tentativa, a emissora pensou em algo ligeiramente diferente. Só podiam participar os compositores concorrentes nos dois festivais anteriores. Apareceram assim 22 temas, dos quais oito avançaram para a final. Os artistas foram escolhidos pelos compositores. Manteve-se depois a votação por distritos, mas surgia uma cláusula muito particular relativamente ao vencedor: o intérprete da canção vencedora poderia não ser aquele que iria à Eurovisão.
       O terceiro Grande Prémio TV da Canção Portuguesa, apresentado por Henrique Mendes (com a ajuda de Maria Fernanda), decorreu a 15 de janeiro nos Estúdios da Tóbis, e foi alvo de alguma atenção por parte da imprensa. O Diário Popular (DP) dedicou boa parte de uma página (atenção que os jornais na altura eram muito maiores em comprimento) a apresentar os concorrentes e esta nova alínea do regulamento. A R&T deu conta da excitação dos espetadores a respeito do espetáculo. O Século veio depois revelar que até foi criado um “Totocanção”: por cinco escudos, os espetadores no Estúdio podiam fazer apostas.
    Assim, os júris distritais (novamente pouco sábios sobre música) avaliaram, primeiro por gravações e depois com base nas atuações, as seguintes oito canções:

Canção nº 1 – “Outono” – João Maria Tudela
Canção nº 2 – “Ele e Ela” – Madalena Iglésias
Canção nº 3 – “Eu Nunca Direi Adeus” – Sérgio Borges
Canção nº 4 – “Ai, Gracinha” – João Maria Tudela
Canção nº 5 – “Rebeldia” – Madalena Iglésias
Canção nº 6 – “Encontro Para Amanhã” – António Calvário
Canção nº 7 – “Caminhos Perdidos” – Madalena Iglésias
Canção nº 8 – “Nada e Ninguém” – Tony de Matos

Madalena Iglésias sucedeu a António Calvário como a artista em competição com mais temas. Ela teve, porém, muito mais sorte que o seu colega: “Ele e Ela” sagrou-se vencedora. Embora tenha sido a vontade dos jurados, a RTP podia, se bem entendesse, retirar a Madalena o passaporte para o Luxemburgo.


A nova regra estava a suscitar “apreensão” junto do público, como conta o DP na sua edição do próprio dia do Festival. Isto porque o regulamento não explicitava a identidade das pessoas que iam escolher o representante português. Seria na mesma Madalena Iglésias? Ou algum dos outros participantes na final nacional? Ou outro cantor chamado propositadamente? O certo foi que a RTP aceitou de imediato a decisão do júri e a regra não chegou a ser aplicada, o que entristeceu os apoiantes de Sérgio Borges, que, de acordo com a Flama, tinha “uma forte corrente a favor”, incluindo a do jogo “Totocanção”. António Calvário, diz a revista, saiu depressa dos estúdios de lágrimas nos olhos, mas confessou mais tarde à R&T que ganhara a melhor.
No dia seguinte, o mesmo jornal dedica um artigo muito interessante sobre o espetáculo, no qual estabelecia um paralelismo entre o concurso e uma audiência no tribunal. A notícia começava com a seguinte frase: “A escolha da melhor (?) canção tem sempre o ambiente austero de um julgamento sensacional”. Numa hábil finta à censura, o jornal conseguiu não só pôr em causa a credibilidade e justiça da escolha da canção e artista representantes do país como estendeu a crítica à forma como os julgamentos da altura (muito pouco transparentes, dado o regime vigente) decorriam.
O jornalista segue as suas acusações apontando o dedo à qualidade mediana das canções e criticando a falta de sangue novo na lista dos intérpretes. O resultado disto foi uma enorme dispersão de votos: dos 270 disponíveis, só 81 foram para “Ele e Ela”. O Século escreve exatamente no mesmo sentido, dizendo ainda que a canção não permitia “nenhuma espécie de otimismos”, ainda que fosse do estilo yé-yé. Um leitor, em carta publicada pela Flama, diz que faltou promoção e que o resultado não foi “nada de novo”.


O DP fez ainda uma entrevista com a vencedora na manhã seguinte à consagração. O jornal dirigiu-se a casa de Madalena e até a acordara: “embora ensonada, rosto marcado pelo esforço e nervos tensos”, a cantora confessou que, depois de repetir o tema, deu um grito de alívio. Confessou estar cansada mas satisfeita, disse que a sua canção era “moderna (…) numa melodia genuinamente portuguesa”, e depois ocupou-se dos muitos fãs que lhe batiam com ânimo à porta.
Uma ausência muito notada, mesmo por quem criticava a falta de novas vozes, foi a de Simone de Oliveira. O Século diz mesmo que “Rebeldia” devia ter ido para a cantora. A Flama não a deixou gozar o descanso forçado e, por isso, foi assistir à emissão em casa dela. Simone estava nervosa e fumava “cigarro atrás de cigarro”. Gostou de “Ele e Ela” e achou o nível de canções superior ao de 1965.


Madalena prometeu trabalhar “ainda mais” até se apresentar no Luxemburgo.
Se o Festival RTP mereceu tanta atenção por parte da imprensa, o da Eurovisão excedeu em muito o destaque habitual. Pela primeira vez, os jornais acompanharam a partida do representante português para a cidade sede do evento.
O Século foi um desses jornais, e dá conta de que Madalena recebeu força de vários fãs, que, em coro, entoaram “Ele e Ela” no aeroporto. Além deles estavam muitos jornalistas e algumas personalidades do meio, como Fialho Gouveia e João Maria Tudela. O jornal elogia vivamente a RTP, dizendo que o canal fez tudo para prestigiar Portugal. A prova disso era o facto de terem enviado o CD com a canção para todas as emissoras concorrentes, bem como a biografia dos envolvidos na canção, a letra em inglês e francês e fotografias. A RTP distribuiu também no Luxemburgo uma pasta com fotografias de Madalena e discos no interior.


O DP foi outro jornal que dedicou páginas inteiras ao certame e mesmo um destaque na capa. No interior, criaram um autêntico “guia do perfeito observador” do Festival, onde apresentaram fotografias de todos os intérpretes, um quadro com o historial, as letras de algumas canções e informação dos autores dos temas. Sobre Madalena, diz que viverá “dois minutos e 16 segundos de tensão”.
As revistas publicavam cartazes promocionais em páginas inteiras e faziam capas com a artista nacional. Uma delas (R&T) dedicou duas páginas à artista luxemburguesa, Michèle Torr, e apresentou igualmente, ainda que de forma mais sucinta, as biografias de todos os concorrentes. A Flama preferiu falar com a “descontraída” Madalena, que entretanto passara por um boato de que teria comprado o júri distrital por 2700 contos.


Quem também mereceu ampla divulgação foi o artista italiano, Domenico Modugno, que participava pela terceira vez no Festival. A primeira das suas entradas foi com o mega sucesso “Nel blu dipinto di blu”, ou “Volare”. Em 1966, tinha uma canção no Festival de Sanremo interpretada por Gigliola Cinquetti, mas Domenico apoderou-se dela e levou-a ao Luxemburgo na sua voz. Udo Jürgens, na sua terceira participação consecutiva, também foi alvo de atenção por parte da imprensa.


A 5 de março teve lugar a 11ª edição da Eurovisão. Portugal foi o oitavo país a subir ao palco, entalado entre a Finlândia e o que viria a ganhar, a Áustria. Participaram 18 mas o concurso chegou a 24 países, contando com alguns do leste europeu, o que elevou o número de espetadores para, segundo o DP, 200 milhões. Em Portugal, certamente, seriam milhões os que colocariam os olhos na prestação de Madalena Iglésias, numa nova versão da canção, e ouviriam a locução de Fialho Gouveia.
Os temas foram julgados por júris nacionais, que representavam fielmente as características das audiências televisivas. As regras do ano anterior, que evitavam influências das votações dos outros países, aplicaram-se aqui também. O Século Ilustrado (SI) explica como se procede ao desempate dentro de cada país: as canções com o mesmo número de pontos vão a nova votação através de braço no ar. Se ainda assim se mantiver a igualdade, o presidente do júri decide a quem dará mais pontos (cada país só podia dar 5, 3 e 1 pontos). A mesma publicação foi pioneira numa coisa que, nos anos posteriores, não podia faltar: um quadro onde as pessoas podiam apontar as votações à medida que elas iam sendo dadas!
No dia seguinte à gala, todos os jornais colocaram Madalena na capa e dedicaram grandes artigos ao assunto.


       O Século elogiou a organização sóbria e o processo de recolha de votos, “simples e extremamente eficiente”. Mais elogios recebeu a cançonetista portuguesa: “Um sorriso descontraído, um à-vontade simpático, uma canção que (…) não estava tão deslocada”. Embora tendo recebido apenas seis pontos, várias editoras europeias manifestaram interesse em gravar “Ele e Ela”. O espanhol Raphael, cujo “Yo soy aquél” viria a ser tema de “Vingança”, novela da SIC, foi também apontado como o melhor representante dos nossos vizinhos. A cantora da Holanda, Milly Scott, mereceu uma nota por ser negra (a primeira a cantar na Eurovisão).


Passam os Festivais mas os mesmos problemas mantêm-se. O Século acusa os países nórdicos de troca de pontos (a Suécia recebeu as pontuações máximas dos seus três vizinhos). O jornalista esqueceu-se certamente de referir que Portugal e Espanha trocaram entre si os 5 pontos. O SI fez um artigo cujo título era “Festival (toma lá, dá cá) da Eurovisão”, no qual várias pessoas deram a sua opinião (concordando que Portugal merecia mais).
Nunca se pensou ser possível que um último classificado conquistasse tanta atenção. Acontece que o último lugar pertenceu a Domenico Modugno, uma das estrelas da canção italiana. Sabe-se pela Flama que, durante o ensaio geral, o cantor gerou uma enorme discussão ao recusar-se a cantar com a orquestra. Queria antes ser acompanhado por três músicos italianos. Isto foi à tarde. “À noite, zero votos”, disse a revista. Madalena, em conversa com o DP, diz que depois da gala “nunca mais ninguém o viu”. Nem à ceia foi! O mesmo jornal criou um título muito provocante: “A sensação: Madalena Iglésias – 6/ Domenico Modugno – 0”. A polémica italiana estendeu-se à semana seguinte ao Festival. Gigliola Cinquetti falou ao SI dizendo que “houve uma conspiração contra a Itália” por parte dos jurados.


À falta de uma vitória ao nível musical, Portugal não deixou de trazer um prémio para casa. Madalena foi considerada pela imprensa internacional a mulher mais bonita. A Flama contou que a cantora cuidou da sua apresentação, levando “uma coleção de toilettes, simples, elegantes e modernas”. São várias as fotos que o provam. Ainda assim, os seis pontos foram a melhor classificação do país até então. Os próximos anos iam ser de sucessivas conquistas para Portugal.


14/09/2013

Apoio oficial:
OGAE PORTUGAL - [AQUI]

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  1. Grande rubrica e uma excelentissima aposta :D

    - Vasco Miguel

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  2. 1964 ... já lá vão 50 anos??

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  3. (quem nos dera, nos tempos que correm, que as pausas fossem assim tão curtas…),

    evitem este tipo de opiniões, que só mancham um artigo que pretende ser jornalistico-investigativo e não de mera opinião.

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  4. Está aqui um excelente trabalho grande pesquisa tal como vocês referiram.
    Apostaram em grande e vocês precisam de mais disto não de algumas supostas suposições como já fizeram com algumas rubricas mas o festival também vive disso de suposições e especulações têm sempre que existir.
    Não existe um defeito a apontar.
    Em 2011 com o Festival Espanhol quando a Lucia Perez ganhou. E nas semi-finais espanholas houve quem interpretasse a música de 1966 eu foi 1 dos portugueses a dizer que eles tinham traduzido a música para espanhol mas depois tivemos respostas dos espanhóis forte e feio pela a música ter sido traduzida para uma música dos ''Anjos'' e posteriormente para a Novela da Sic Vingança. Acho eu que até agora ainda não houve qualquer tipo de denuncia de '' Plágio'' ou outra coisa qualquer como lhe queiram chamar. Como já vimos acontecer com outras canções que vão a eurovisão que ganham com músicas parecidas que já existiam. Aqui a sorte foi os ''Anjos'' não terem ido a eurovisão e haver um grande discrepância de muitos anos.

    Ass: ''Aspas'' ''Aspas''
    (o vosso fiel leitor)

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  5. Para o "Aspas" "Aspas"

    "Até agora ainda não houve qualquer tipo de denuncia (...)". Não houve, nem vai haver, simplesmente porque os Anjos sempre apresentaram a canção como uma versão e não como um original. Agora se nem todas as pessoas sabiam ou se continuam a não saber que se trata de versão, problema delas. Legalmente, está tudo correcto.

    Quanto à nova rubrica: grande trabalho! Parabéns!

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  6. Parabéns, crónicas. Provaram, mais uma vez, que são o melhor site eurovisivo em portugal, e talvez no mundo. Sofia Monte

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  7. Adoro esta nova crónica!

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  8. Apesar de muito longa, está aqui um grande trabalho muito interessante! A sério! CONTINUEM! E... FORÇA PORTUGAL!

    Gonçalo

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